Ricardo Melo (UOL)
Para defender os espetáculos de pancadaria como esporte legítimo, o pessoal das lutas de vale tudo provavelmente usará a célebre foto de Domício Pinheiro. Era novembro de 1974, interior paulista. Naquele instantâneo memorável, Domício flagra o momento quando, numa disputa de bola, o atacante Mirandinha, então no São Paulo, quebra a perna esquerda ao se chocar com o zagueiro Baldini, do América de Rio Preto.
A imagem deve estar estampada nos jornais de hoje, pela incrível semelhança plástica com os registros do momento em que, ao tentar atingir o adversário, Anderson Silva espatifa a própria canela em Las Vegas. Vai servir, com certeza, para alimentar a ladainha que todo esporte tem sua dose de violência, ou que imprevistos acontecem em qualquer atividade. A comparação soa tão verdadeira quanto usar fotos de dois corpos estatelados no chão para dizer que ambos são iguais -não importa se um deles caiu por acidente do décimo-andar e o outro foi arremessado por algum meliante durante um assalto.
A polêmica, de todo modo, não é propriamente nova, mas ferve a cada drama como o de Anderson Silva. De minha parte, mantenho a convicção de que os embates de vale tudo, mesmo repaginados como MMA, UFC ou o que o valha, são um dos eventos mais repulsivos oferecidos sob a chancela de "esportivo". A começar do objetivo maior, quando não único e exclusivo: destruir fisicamente o adversário na base da porradaria desenfreada, com chutes, pontapés, socos e outros golpes igualmente "refinados".
Muitos dirão que o boxe também é assim. É mesmo bastante parecido, talvez um pouco mais asséptico. Por isso nunca tive especial interesse pelo que acontece nos ringues, exceto quando seus personagens ficam notórios pelas sequelas da troca de murros ou ganham destaque em seções diferentes dos jornais. Geralmente trata-se de gente humilde e socialmente injustiçada –logo presa fácil de mafiosos sedentos de lucros bilionários derivados da exploração dos "instintos mais primitivos". Que o digam nomes como Cassius Clay, hoje confinado a uma cadeira de rodas de tanto bater e apanhar, e Mike Tyson, cujo prontuário dispensa apresentações.
Mesmo com toda a corrupção, ganância e tapetaços desacreditando atividades como o futebol, há, por enquanto, uma distinção fundamental. Dentro das quatro linhas, o desempenho não se mede pela aniquilação física do oponente. Nos octógonos de vale tudo, a conversa é outra. Quanto mais um lutador destroçar o outro, mais prestígio, dinheiro e "reconhecimento" ele terá -até o momento em que se tornar imprestável como um galo estropiado incapaz de abater rivais nos ringues clandestinos. Chamar isso de esporte ultrapassa o cinismo. É empulhação pura e simples.
Detalhe: no Brasil, os galos são bem mais protegidos. Por ilegais, rinhas podem dar cadeia a quem as promover. Nada que um bom advogado não resolva, mas o constrangimento pelo menos fica. No caso do MMA, a vida é bem mais mansa. Os organizadores apenas correm o risco de enriquecer, virar celebridades e festejar índices de audiência. Tudo embrulhado num discurso de "trabalho social" que salva jovens sem futuro e fadados ao crime.
Anderson Silva não tem que pedir desculpas ao Brasil, como fez depois da derrota.
O país é que tem que pedir desculpas a Anderson Silva.
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